O combate à intolerância religiosa está em pauta. O Ministério Público Federal deu ganho de causa aos praticantes de cultos afro – como garante a Constituição em relação à liberdade de religião – fortalecendo os bens culturais, sociais e religiosos do povo brasileiro.
Tudo começou em junho de 1989, quando o pai Francelino Shapanan e Cássio Ribeiro foram à Brasília, prestar queixa sobre as ações discriminatórias do bispo Macedo, em relação ao culto religioso do povo-de-santo, Ironia do destino ou não, o documento foi redigido numa velha máquina de escrever da Fundação Palmares!
Em 25 de maio de 1992, o Ministério Público Estadual moveu o processo (306/92), que através dos promotores públicos José Eduardo E. Casarini e Gabriel César Z. de Inellas, entenderam e denunciaram o bispo Edir Macedo como incurso no art. 208, caput do código penal cc art. 71 e art. 286, combinado com o art. 69. No corpo do inquérito lê-se o seguinte: “Consta que, incluso inquérito policial, que desde 18 de junho de 1989, até a presente data, reiteradamente, de forma continuada e em concurso material, Edir Macedo de Bezerra, qualificado no documento n° 01, a esta denúncia, juntado conforme estatuto da Iurd, documento n° 02, consoante documento n°3/4, na qualidade de “bispo” (chefe espiritual da Igreja Universal do Reino de Deus), vem vilipendiando, publicamente, atos e objetos de culto religioso e ainda incitando, publicamente, à prática de crime”.
Trocando em miúdos: por desprezo aos cultos afro-brasileiros e estímulo à discriminação através de seus meios de comunicação, o bispo Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), ficou preso, por uma semana, em São Paulo.
Três anos depois, em 1995, a Igreja Universal mexeu com duas forças poderosas (ver texto, em destaque, no final desta reportagem). Isso causou algumas dores de cabeça, mas não a impediu de crescer. Hoje são 67 emissoras de TV, 40 rádios, 2 gráficas, 2 jornais, 1 revista e 3.500 templos espalhados pelo Brasil.
Junto a essa expansão material, as agressões à Umbanda e ao Candomblé cresceram igualmente. Nesse ínterim, a consciência de união do povo-de-santo também cresceu, e, veio à tona, no Dia Internacional da Declaração dos Direitos Humanos, em dezembro de 2003, quando paralisaram a Avenida Paulista e exigiram o fim da difamação de seu culto religioso, disseminada pela Rede Record e Rede Mulher. Logo depois, uma representação foi encaminhada ao Ministério Público Federal, exigindo a retirada, do ar, dos programas que feriam os princípios éticos dos meios de comunicação.
Tal representação continha os mesmos argumentos de dez anos atrás, mas estava sustentada por uma poderosa união entre o pai Francelino Shapanan, coordenador do Instituto Nacional da Tradição e Cultura Afro-Brasileira (Intecab-SP), a dra. Maria Aparecida Bento (Cida), coordenadora geral do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert); o deputado estadual Tiãozinho (PT), também coordenador pela Frente Parlamentar pela Ética da TV; o dr. Hédio Silva Júnior (secretário estadual de Justiça e Defesa da Cidadania), e do dr. Antônio Basílio Filho (diretor jurídico do Souesp).
O tempo passou. Em 28 de março de 2005 a juíza Marisa Cláudia Gonçalves Cucio, analisou o processo e decidiu conceder, ao povo-de-santo, o direito de resposta aos ataques discriminatórios das redes (Record e Mulher), por meio de uma liminar.
Em 26 de maio de 2005, 13 anos após a prisão do bispo Macedo, o programa-resposta, conduzido por Tony Garrido, foi gravado no auditório do TUCA (Puc), com a presença de gente importante, como a autora da ação judicial, a Procuradora Geral da República, dra. Eugênia Augusta Fávero; o Dr. Sérgio Gardenghi Suiama, procurador regional dos Direitos do Cidadão; o jurista Dalmo Dalari e representantes da Igreja Presbiteriana Independente, da Congregação Israelita Paulista, da Igreja Católica, da Rama Krishna e outros tantos com a consciência voltada ao direito da liberdade de culto.
A energia era de esperança, e, nesse clima, registramos antes e depois do programa, o depoimento de alguns participantes.
João Batista Souza Filho, conhecido no meio umbandista como Pai Joãozinho Sete Pedreiras, presidente do Superior Órgão de Umbanda do Estado de São Paulo – Souesp, disse o seguinte: “O Souesp agrega, em seu meio social, as federações que, por sua vez, agregam os templos no Estado de São Paulo. Esta reunião representa, para nós, uma vitória; é a conquista do nosso espaço, e o fizemos com tranquilidade, sem entrar em conflito, obedecendo às regras e as leis dos orixás. O fato de estarmos hoje reunidos, com várias lideranças afro, é de suma importância, pois significa que estamos unidos em prol de nosso direito de expressão, por um meio de comunicação. Aparentemente ,tem-se a impressão que existem algumas diferenças entre nós, mas já aparamos essas diferenças e as arestas. Este é um momento em que temos de nos unir. Falamos a mesma língua e temos o mesmo ideal. Temos diferenças no ritual, mas no relacionamento estamos juntos.
Antônio Basílio Filho, diretor jurídico do Souesp, fala sobre a entrada da ação: “Começamos esta ação em dezembro de 2003, quando, juntamente com pessoas dos cultos afro, nos reunimos no Masp e descemos em caravana , fechando a Av. Paulista. Ali, distribuímos uma ação junto ao Ministério Público Federal, exigindo a intersecção do Ministério, por uma ação pública civil de direito de resposta, tendo em vista a discriminação religiosa manifestada pelas Redes, Record e Mulher. Depois de interposta essa ação, a juíza analisou toda a documentação do processo e entendeu, por bem, conceder uma liminar com direito de resposta. Hoje estamos aqui para montar uma fita e apresentar ao Ministério Público Federal. A determinação foi fazer uma gravação de uma hora e essa fita deverá ir ao ar por sete dias consecutivos. A Rede Record e a Rede Mulher têm a obrigação de fazer chamadas pela manhã, à tarde e à noite, no horário em que esse nosso programa (resposta) vai ao ar, ou seja, no mesmo horário em que fomos atacados”.
Paulo Santos, do Conselho Parlamentar pela Cultura de Paz – Conpaz, da União das Sociedades Espiritualistas – Unisoes, nos revela: “Este é o momento, eu diria, oportuno para que todas as religiões e grupos espiritualistas se unam para construir uma cultura de paz. Hoje é inadmissível que quaisquer intolerâncias sejam disseminadas, sobretudo, em veículos de comunicação. Acredito que se pudermos avançar, em termos de diálogo e cooperação inter-religiosa, nós poderemos construir uma educação para uma cultura de paz. A mídia tem um papel muito importante na divulgação dessas ideias e iniciativas, que vêm crescendo no Brasil, quanto à cooperação religiosa.”.
Eli lnoui, também do Conpaz e representante do Centro de Dharma da Paz do Budismo Tibetano, ressaltou que: “Qualquer discriminação religiosa, além de ser crime, não ajuda ninguém e não faz ninguém crescer. Uma das atividades do Conpaz é trabalhar a cultura de paz no Manifesto 2000. Suas bases são: a tolerância, a igualdade dos direitos e a solidariedade, que são os pontos básicos para o crescimento e para a educação daqui pra frente, pro futuro.”.
Lia Bergman, da B’nai-b’rith – Brasil (Filhos da Aliança) veio à reunião para colaborar e explica: “Nossa entidade funciona em 52 países, tem 170 anos e batalha pela dignidade e pelo respeito às diferenças entre religiões, etnias e povos. O sentido é que todos foram feitos à imagem e semelhança de Deus. Todos têm uma centelha divina e todos têm o mesmo valor. Colocar tal ação em prática é o mais difícil e é pra isso que a B’nai-b’rith atua e estamos aqui hoje. É um marco muito importante porque é a primeira vez que a Justiça Brasileira dá ganho de causa a uma ação coletiva para combater o racismo. Esse avanço da legislação brasileira, quanto ao racismo, é muito importante, pois as religiões unidas têm muito mais força e poderão atuar para uma modernização e atualização constante de seus interesses. Agora estamos buscando um jeito de fazer uma legislação que abranja a lnternet, que possa coibir o racismo pela lnternet.”.
Pai Carlinhos de Oxum, do Templo de Umbanda Pai Oxóssi e Mamãe Oxum. |
Pai Francisco de Oxum. |
Pai Carlinhos de Oxum tem 40 anos de Umbanda e um templo na Vila Guilherme, com um belo trabalho social. Ele cita: “O Templo de Umbanda Pai Oxóssi e Mamãe Oxum tem oculista, dentista, médicos que atendem uma vez por mês, gratuitamente, à população carente do bairro. Depois de 40 anos, atuando na Umbanda, chegou um dia importante. Hoje podemos mostrar que nós, da Umbanda e Candomblé, somos gente séria, e, dentro de nossa religião, não discriminamos ninguém, portando, também não devemos ser discriminados como se fôssemos marginais. O direito de resposta que temos hoje veio com justiça e a ajuda dos orixás.”.
Tata lnkice Sesitaodê (digina de Candomblé de Angola), ou Weber Nahra, que também quis participar desse importante evento, disse o seguinte: “Minha roça funciona há oito anos em Parelheiros, divisa de São Paulo com Embu Guaçú. Sou filho de Mutakalambô (divindade da caça, semelhante a Oxóssi, na Umbanda). Já era hora de termos direito de resposta, a pichação já estava indo longe demais. Nossa religião, em si, é muito bonita, muito pura e na TV estava sendo mostrada como a pior que existe. Nada daquilo que falaram acontece dentro de uma casa de Umbanda ou Candomblé. Nossa hierarquia é muito grande e os ancestrais africanos merecem respeito. Coitado do orixá Exu, porque só ele que é enxovalhado. Se Exu sair da vida deles, não saberão o que fazer! Agradeço pelo dia de hoje, pela união de nossa religião e vamos lutar para que nossa bandeira esteja sempre tremulando”.
Pai Francelino Shapanan, coordenador da Intecab e incansável lutador pelo direito de resposta, diz: “Este é um grande momento para que as religiões afro-brasileiras mostrem a verdade, o que somos, de onde viemos e o que fazemos. Não tínhamos essa oportunidade no Brasil. Nosso correio é um correio nagô – do boca-a-boca. Nossa religião não tem um meio de comunicação. Portanto, esse diálogo de hoje é muito importante para mostrar o que temos e o que estamos construindo. Por isso, o Ceert e o Intecab convidaram os intelectuais e todas as lideranças para virem conversar conosco. A mídia é importante. Ela forma e nós temos a obrigação de mostrar a verdade para o Brasil e para o mundo.”
Sandra Epega, membro do Conselho Religioso do Intecab-SP e diretora do informativo Tambor, questionada sobre ‘a justiça estar sendo feita’, respondeu: “Graças ao orixá Xangô! Bom, ganhamos, mas não levamos! Agora vamos ter que nos unir e levantar um muro contra os recursos que virão. Esperamos que a Justiça vá até o fim e que possamos superar esse monte de recursos. Não é só pela nossa religião, mas por todas as que estão sendo agredidas, de uma forma ou de outra, por qualquer um dos caminhos da mídia. Assim, devemos ter o espaço liberado, não para uma justificativa, mas para um esclarecimento ao público de quem somos e ao que nos propomos. Não se demoniza a religião do vizinho, enquanto se endeusa a própria. É isso que temos visto, a princípio num canal de televisão e muitas vezes em jornais específicos de igrejas ou outros jornais que se prestam a isso”.
“Não queremos uma dicotomia do mundo – os evangélicos, e os outros. Queremos um mundo homogêneo. Todos são filhos de Deus. Não importa os nomes que damos a Deus. A mim Ele mostrou a face orixás, a eles mostrou a face de Jesus, mas é o mesmo Deus que nos carrega no colo”.
Mãe Sylvia de Oxalá, coordenadora do Instituto Cultural Baobá e presidente do Axé llê Obá, que fica em Jabaquara (São Paulo), comenta: “É muito importante, porque agora saíram verdades que nunca saíram. É um esclarecimento para o mundo, porque hoje, através da comunicação, você não comunica só ao seu setor, se comunica com o mundo, e com isso vai melhorar muita coisa, inclusive diminuir o preconceito, não só o religioso quanto o racial. Todos descendem do negro, da mesma mãe, assim diz o DNA… então por que vamos brigar? Saímos todos da Mãe-África, que pôs todo mundo para o mundo, com suas diásporas, cada um foi pra um lugar com seu grupo. Tudo aconteceu há 150 mil anos”.
Outra figura importante no trâmite do processo, foi o deputado estadual Sebastião Arcanjo, Tiãozinho (PT), Ogã e filho de Ogum. Ele declara: “A reunião de hoje já está caracterizada como um acontecimento histórico, não só para as religiões de matriz africana (Candomblé e Umbanda), mas pela luta por instituir, no Brasil, aquilo que está consagrado em nossa Constituição e que é a nossa maior riqueza: a pluralidade e diversidade! Este ato poderia ser exclusivo do Candomblé e da Umbanda, mas a generosidade da nossa religião fez com que se trouxessem, ao mesmo espaço, católicos, budistas, judeus, muçulmanos, espíritas, as mais variadas tradições religiosas, para dar sentido à visão que nós temos de mundo. O Brasil e o mundo só serão verdadeiramente justos à medida em que tenhamos a capacidade de conviver e nos relacionar com aqueles que professam algum tipo de religião que não a nossa; enfim, que pensam e agem diferentemente de nós. Uma visão monolítica de sociedade e estado não é mais compatível com os dias atuais, portanto apresentamos aqui, hoje, uma verdadeira aula de cidadania, como disse o professor DaImo Dalari: “Uma aula de educação política’ em que todos os brasileiros e os cidadãos do mundo possam se inspirar nesse exemplo, para que possamos continuar promovendo uma cultura de paz, de combate aos preconceitos, enfrentamento à intolerância. Que o dia de hoje marque o início de um novo tempo no Brasil e no Mundo”.
Cássio Ribeiro, fundador da Federação de Umbanda e Cultos Afro-brasileiros de Diadema – Fucabrad, que também participou do trâmite, revela: “O atual secretário estadual de Justiça e Defesa da Cidadania, o dr. Hédio da Silva Junior, me disse que este processo atual é uma consequência de nossa antiga luta. Acho que na época, o que nos faltou, foi justamente um deputado e um advogado comprometidos com a causa e uma maior união entre Umbanda e Candomblé. Porém, hoje mostramos que o Brasil não comporta a intolerância nem a perseguição religiosa, e não comporta que pessoas, de má fé, abusem do povo induzindo-o à tensão religiosa. O Brasil é paz e amor! É isso que queríamos provar desde o começo e foi provado hoje, aqui. Aliás hoje, eu me senti muitos… eu não era só o Cássio. Hoje fui todos aqueles que não puderam estar aqui (que estão longe sem saber o que está acontecendo), e todos aqueles que já fizeram a passagem, que eram umbandistas, que eram do santo, e que amaram os orixás”.
“Hoje foi um dia histórico: um dia em que nos foi dada voz e que nos foi dada vez. É um momento de grande emoção, de grande alegria para todos nós da Umbanda e cultos afro-brasileiros. Hoje foi um dia em que os orixás falaram mais alto!”.
“Entre setembro e outubro de 1995, a Igreja Universal envolveu-se em dois assuntos polêmicos. Ambos tinham a ver com imagem. Um deles foi com a Igreja Católica, quando um pastor da Igreja Universal, Sergio von Helder, chutou uma imagem de Nossa Senhora da Aparecida (padroeira do Brasil) durante um programa na Rede Record. A outra foi com a Rede Globo, quando o bispo Edir Macedo processou a emissora por vilipendiar sua imagem na minissérie “Decadência”. Quanto ao assunto “santa”, o bispo (na época em Nova lorque) pediu desculpas à Igreja Católica.
Quanto ao assunto “Globo”, Dias Gomes (autor da minissérie) respondeu: “Fiz um pastor honesto, que foi o Milton Gonçalves, e um desonesto, o Edson Celullari. Acho que ele tem preconceito de cor, porque se identificou logo com o desonesto.” (sic)”
Fonte: Revista Orixás