Magistrado da Vara de Violência Doméstica de Campinas afirma que Estado não deve interferir nas liturgias religiosas e que a tipificação da conduta ‘revela inaceitável intolerância religiosa’.
A Justiça de Campinas/SP absolveu uma mulher de 33 anos denunciada pelo crime de “lesão corporal com violência doméstica agravada” depois de um ritual que iniciou a filha no candomblé. Na decisão proferida nesta quinta-feira (15), o juiz destaca que o Estado não deve interferir nas liturgias religiosas e afirma que a tipificação da conduta como crime “revela inaceitável intolerância religiosa”. Cabe recurso.
Na denúncia oferecida à Justiça pelo Ministério Público (MP-SP), o promotor Gustavo Simioni Bernardo pedia a condenação da mãe porque ela teria ofendido a integridade física da criança ao participar do ritual.
Um babalorixá explicou o que é a escarificação, comum na prática religiosa de matriz africana e no ritual de iniciação, consiste na produção de pequenas incisões na pele “para oferecer proteção à pessoa”.
Ao proferir a sentença pela absolvição sumária da mãe, o juiz Bruno Paiva Garcia, da Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Campinas (SP) descreve “flagrante atipicidade” da denúncia, diante um “fato narrado que evidentemente não constitui crime”.
“(…) o Estado não deve interferir nas liturgias e não deve embaraçar, de qualquer forma, o livre exercício de culto religioso, independentemente de ser tratar de religião adotada pela maioria ou minoria da população brasileira, como o são os umbandistas e candomblecistas”, destaca.
Sobre as lesões apontadas no laudo pericial e anexadas à denúncia, o juiz destaca que são ínfimas, “que não causaram prejuízo físico, psicológico ou sequer estético à criança”.
“Em verdade, o comparecimento em Delegacia de Polícia na companhia do pai para delatar a mãe e a consequente submissão a exame médico-legal causou, possivelmente, constrangimento maior que a própria escarificação”, aponta.
‘Precedente importantíssimo’
O advogado Hédio Silva Jr., que representa a mãe no processo, comemorou o desfecho na esfera criminal e disse que o resultado deve causar impacto no processo pela retomada da guarda da menina pela moradora de Campinas.
“Certamente ainda uma decisão sujeita a recurso, mas um precedente importantíssimo, seja por que reconheceu o direito de transmissão familiar da crença e da cultura, seja porque entendeu que a circuncisão, por exemplo, ela implica uma intervenção no organismo humano muito mais gravosa do que a escarificação, e nem por isso há registro de criminalização de pais judeus ou muçulmanos”, disse.
O G1 tentou contato com a advogada que representa o pai da menina, mas não obteve sucesso. Assim que ela se manifestar, o texto será atualizado.
O ritual e a denúncia
O ritual de filiação ao candomblé, em um terreiro na cidade de Vargem (SP), ocorreu em 9 de outubro de 2020. O registro do boletim de ocorrência do pai contra a mãe da menina foi feito em 17 de janeiro de 2021. Já a denúncia do promotor Gustavo Simioni Bernardo foi oferecida em maio deste ano.
Ao G1, o babalorixá Toloji, de 77 anos, fundador e membro da Associação dos Religiosos de Matriz Africana de Campinas e Região (Armac), explicou como funcional o ritual de iniciação.
Ele que deve ser feito pela liderança do terreiro (babalorixá ou ialorixá), e demanda incisões “praticamente imperceptíveis” pelo corpo. Segundo ele, nesses locais são colocadas uma substância (mistura de ervas) que visa a proteção da pessoas, entre outras coisas, contra espíritos.
Ainda de acordo com Toloji, responsável por um terreiro de candomblé que existe há 50 anos em Campinas, qualquer pessoa que frequente o terreiro pode passar pelo ritual de iniciação, sendo que, no caso de criança, ela precisa estar acompanhada de um dos responsáveis. No caso da mãe alvo da denúncia, ela também fez a iniciação.
Mãe da criança mostra marcas do ritual de iniciação ao candomblé ao qual ela também participou.
Lâmina descartável
O babalorixá contou que antigamente os pequenos cortes usados no ritual eram feitos com navalha, mas que desde o surgimento dos casos de Aids e do risco de contaminações diversas pelo uso de lâminas compartilhadas, as incisões são feitas com lâminas descartáveis. “A gente usa aquela gilete, que se quebra após o uso, para não ser usada por mais ninguém’, diz.
O líder do terreiro conta que além do ritual de iniciação, outras cerimônias do candomblé também podem usar a escarificação, mas atendem a pedidos e a ritos de proteção específicos. Já os cortes da iniciação são comuns a todos.
“Eles são muito pequenos e geralmente quase não sai sangue. As substâncias que passamos, além da proteção, impedem a infecção e ajudam a cicatrização. No dia seguinte não tem mais nada”, afirma.
O babalorixá defende a prática presente na religião de matriz africana, e argumenta que as manchas resultantes no ritual são menores que práticas comumente aceitas na sociedade. “As pessoas não fazem tatuagem?”, questiona.
Fonte: G1
Foto: Arquivo pessoal