Diretor da ONG Educafro afirma que os organizadores dos encontros de peregrinos com o papa Francisco só ofereceram ajuda a 18 pessoas para a viagem a Portugal. Afrodescendentes prometem manifesto contra o preconceito
Em agosto do ano passado, numa conversa em São Paulo, Frei David, diretor da Educafro, cuja missão é defender os interesses da população afrodescendente, ouviu do coordenador-geral da Jornada Mundial da Juventude, Dom Américo Aguiar, um pedido enfático: que ele organizasse um grupo de indígenas e quilombolas para participar dos encontros entre jovens e o papa Francisco, que serão realizados entre 1º e 6 de agosto, em Portugal. Entusiasmado, Frei David disse que conseguiria reunir 100 pessoas para os eventos, desde que tivesse a ajuda necessária para cobrir todas as despesas. Dom Américo assentiu com a cabeça. Estava selado ali, no entender do religioso brasileiro, um acordo tácito.
A quatro dias do início da Jornada Mundial da Juventude, que deve reunir 1,5 milhão de peregrinos no país europeu, quase nenhuma ajuda tinha vindo dos organizadores dos encontros com o papa, nem da Igreja Católica. Apenas três quilombolas haviam recebido auxílio para passagens, estadia e alimentação. E ainda estava na promessa o fornecimento de um vale-transporte para que pudessem circular por Lisboa nos dias da Jornada. Para Frei David, esse descaso é o retrato mais claro do racismo estrutural que impera na Igreja, que pouca importância dá à diversidade. “A burocracia emperrou. Das 100 vagas iniciais, prometeram 18, mas apenas três estavam confirmadas“, reforça o religioso. Após o Correio questionar Dom Américo, ele decidiu oferecer ajuda para que mais 15 jovens participem da Jornada. Entre eles, estão um indígena, moradores da periferia e jovens trans.
Na avaliação do diretor da Educafro, o comportamento dos organizadores da Jornada Mundial da Juventude se repete no dia a dia da Igreja Católica. “O comando da Igreja é branco. Olhemos para o Brasil, onde 56,1% da população são de afrodescendentes: quantos dirigentes negros a Igreja tem no país?“, indaga. “A Igreja está fazendo um trabalho sofrível quando se fala em diversidade“, acrescenta. Ele acredita que essa estrutura ultrapassada explica boa parte da fuga de negros católicos, sobretudo os mais jovens, para as igrejas evangélicas. “Como não se veem representados, saem em busca de espaço em outros grupos religiosos. A igreja evangélica oferece incentivos para crescimento, alguns acreditam até que possam ficar ricos (sendo pastores)“, assinala.
Quem também se aproveita da falta de interesse da Igreja Católica em inserir indígenas e afrodescendentes em suas estruturas é a extrema direita, que tem cooptado cada vez mais esse público com um discurso conservador, atrasado e manipulador. “Infelizmente, a Igreja Católica não tem dado a atenção adequada a esses grupos. Eles não se sentem verdadeiramente parte de um processo de formação. Posso garantir que a Igreja Católica do Brasil se afastou muito da juventude negra. A Igreja está totalmente insensível à realidade de dor e de exclusão dessa população“, ressalta. “Não há compromisso com os mais pobres, os afrodescendentes e os indígenas“, complementa.
Dignidade roubada
Na avaliação de Frei David, a percepção que se tem é de que a Igreja Católica continua com uma visão da Idade Média ou mesmo dos tempos do Brasil Colônia. “Durante os séculos de escravidão no país, tivemos congregações masculinas e femininas que, para cada pessoa religiosa num convento ou num seminário, havia três pessoas negras escravizadas para servi-las. Isso é grave. A Igreja explorou muito a comunidade negra e, agora, está na hora de fazer um gesto concreto para recuperar a dignidade roubada deste povo“, reforça. Ele lembra que aqueles que tentaram mudar essa cruel realidade foram isolados pela Igreja. “Em 1720, um padre que proibiu católicos que tinham escravos de comungar foi mandado embora do Brasil. Ele foi levado para a Espanha, onde havia nascido“, conta.
Nos dias de hoje, acrescenta o diretor da Educafro, os negros que a Igreja Católica relega são as maiores vítimas da violência. “No Rio, por exemplo, morrem mais jovens negros por ano do que a soma de todas as regiões dos EUA. E o governador do Rio, Cláudio Castro, é católico, do Movimento Carismático. Onde está o compromisso do Movimento Carismático com os valores do Reino de Deus? Um deles é justamente proteger os pobres e oprimidos“, comenta. E questiona: “Quais são os padres que denunciam os assassinatos de jovens negros no Brasil?“.
Frei David diz torcer para que o papa realmente consiga mudar esse quadro com a Jornada Mundial da Juventude. “Nossa expectativa é de que o papa peça às igrejas do mundo e do Brasil para olharem e se comprometerem mais com o combate às violências, em todos os sentidos, sofridas pelo povo afrodescendente”, afirma. Ele, porém, não esconde o ceticismo. “A maioria dos bispos e padres não segue o que o papa diz. Estão acomodados e mais preocupados em garantir uma casa confortável e o carro do ano”, frisa. Caso se mantenha nessa direção, certamente a Igreja terá uma enorme fatura a encarar mais à frente.
Quilombolas cobram mais inclusão
Os três representantes da população quilombola do Brasil que participarão da Jornada Mundial da Juventude, que vai de 1º a 6 de agosto, em Portugal, prometem fazer um movimento contundente contra o racismo presente na Igreja católica. O médico Gilmar Santos, 29 anos, do Quilombo Kalunga, em Cavalcante (GO), diz que os negros não se sentem representados dentro da estrutura comandada pelo papa Francisco, que estará nos encontros, e que os poucos afrodescendentes que conseguiram furar o bloqueio e atingir algumas posições de liderança são vítimas de preconceito dos próprios religiosos.
“Apesar de o povo negro ser mais da metade da população brasileira, não vejo bispos, padres ou freiras negras dentro da Igreja nos representando. A Igreja Católica finge que não vê os problemas do povo negro do Brasil“, diz o médico, que conseguiu se formar na Venezuela graças a um acordo internacional fechado por meio da Educafro, instituição que luta pelos interesses da população afrodescendente. “É muito triste conversar com os poucos negros que conseguem ser líderes da Igreja Católica e ouvir os seus relatos sobre o racismo dos próprios colegas religiosos“, acrescenta.
Designer gráfico, Marcolino Vinícius Vieira, 28, quilombola do município de Ilhéus (BA), afirma que a falta de representatividade está afastando os jovens negros da Igreja Católica. Na visão dele, a reaproximação da Igreja com a juventude negra passa, por exemplo, pelo maior acesso aos colégios católicos. “De cada 100 alunos dos ensinos fundamental, médio e superior, menos de 2% são afrodescendentes com bolsas de estudo. Isso mostra o quanto a Igreja não está se importando com o drama educacional do povo negro do Brasil, pós-abolição inacabada de um escravismo que a própria Igreja contribuiu“, frisa.
Grito por ajuda
Para a socióloga Rosilene Guimarães, 25, também do Quilombo Kalunga, ainda que sejam apenas três os representantes de seu povo na Jornada Mundial da Juventude, será importante estar em um evento com o papa Francisco para mostrar que a Igreja precisa acordar, pois Deus está ao lado de todos, sem distinção. “A Igreja é do branco, do negro, do pobre, do rico. Nossa presença na Jornada será um forçar de portas“, diz. “Não me sinto representada. Nós, negros, somos minoria dentro da Igreja, que nunca se importou em conquistar nossos corações. Os bancos das igrejas do Brasil são ocupados por brancos, em sua maioria“, complementa.
Segundo Rosilene, para que a Igreja seja mais inclusiva, são necessários projetos sociais que acolham crianças e jovens em escolas católicas. “Há um racismo institucional. Por isso, tantos negros estão abandonando a Igreja“, ressalta. No entender de Gilmar Santos, a participação na Jornada será um importante instrumento de luta por mais espaço do povo negro na Igreja. “Depois de muita luta, conseguimos um espaço pequeno em um evento gigantesco”, assinala. Mas isso não é motivo para desânimo, muito pelo contrário. “Participar da Jornada significa meter os pés nas portas, porque não estavam pensando no povo negro, nos quilombolas. Vamos fazer a Igreja acordar“, acrescenta Marcolino.
Nenhum dos três quilombolas sabe se terá oportunidade de se aproximar do papa Francisco durante a Jornada. Mas, caso isso aconteça, todos têm o discurso pronto. “Papa, interceda pelo povo afrodescendente, que tanto sofreu e ainda sofre, vítima de violência, de racismo. Faça com que a Igreja Católica reconheça a dívida histórica que tem com o nosso povo“, afirma Rosilene. Para Marcolino, o desejo é de que a Igreja financie uma revolução, territorial e cultural no Brasil, tendo como prioridades os negros, os quilombolas e os pobres. “Papa, em nome do nosso povo, peço que nos ajude“, diz Gilmar. (VN)
Fonte: Correio Brasiliense
Foto: Ed Alves/CB/D.A Press